Sunday, November 11, 2007

Toda a minha vida acompanhei de perto pessoas em situações diferentes da minha.
Sendo os meus pais técnicos de serviço social, e tendo eu e os meus irmãos vivido dentro do trabalho deles, aprendemos, seguramente, a apagar fronteiras de preconceito. E o preconceito parece começar com a elaboração de grupos. Os grupos são tantos quanto a ignorância diante de cada pessoa.
Aquele é toxicodependente, e falo do Carlos. Ontem ligou-me.
Já aqui falei do Carlos, quando voltei a falar do Zé. Recuperou, desde que o conheço, três ou quatro vezes, e conheço-o há menos de dois anos. Voltou lá com a cabeça, foi dar nela, recaiu. O que o perturba muito mesmo é a companheira, mãe do seu segundo filho; é isso que me vai dizendo.
Conheço-a; visitei-a na prisão de Tires duas ou três vezes. Quando saiu foi para a minha porta (desconfio que é por isto que quase ninguém quer ver ou saber da realidade dos muitos que nos cercam). E conheço também o seu segundo filho, o Fábio que tem três anos.
Ontem o toxicodependente ligou-me e disse com a voz que tem sempre
- Nem vais acreditar; o menino tem um cancro no sangue. Está magrinho e não se lhe pode tocar, fica cheio de nódoas negras.
O menino é igualinho a um menino. Visitei-o em casa da avó. Na verdade fui lá para que a mãe do Carlos abrisse a porta. É que o Carlos tinha partido a murro essa mesma porta na última vez que lá tinha estado. Tinham-se zangado e ele, agora recuperado, queria estar com o seu filho.
Quem abriu a porta afinal foi o irmão gémeo do Carlos, o Paulo que pertence ao grupo dos alcoólicos. Semi-abriu e estava ainda mais assustado do que eu.
Assustei-me ao subir as escadas mais feias que algum dia vi. Assustou-se o Paulo por ver o irmão toxicodependente; por saber que a mãe não o queria ali, não fosse ele querer levar o menino com ele. Por saber que a mãe estava deitada, paralisada do lado direito, consequência de um AVC. Assustado, porque para além de pertencer ao grupo dos alcoólicos, era também responsável por uma mãe acamada e por um menino do grupo dos filhos de seropositivos.
Garanto-vos que o menino é igualzinho a um menino apesar de ainda quase não falar. Garanto-vos que não entendo porque é que o menino subiu as escadas mais feias que algum dia vi. Porque é que um menino que ainda não sabe dizer nada de bom está a morrer.

Tinha escrito isto há dois meses, não cheguei a publicar porque me pareceu que ninguém queria saber disto.
É muito real e está próximo; não é notícia distante nem filme aproximado, não tem plano, nem campo de profundidade. Talvez esteja a ser injusta e preconceituosa. De qualquer forma fica o registo, o Fábio fez quatro anos ontem e morreu ao fim do dia a caminho do hospital. Estou desolada.

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