Monday, July 24, 2006

(tento as formas)

Tanka

Na sombra de Deus
atravesso o deserto
ao meio dia
chego à terra da água
que nunca me prometi

Monday, July 17, 2006

Já aqui falei no Zé. Mendigava, consumia, ressacava, mendigava. Contou-me, e eu acreditei, que a mãe o deixou com a avó ainda antes de ter feito um ano. O pai já o tinha deixado com a mãe durante a gravidez. Cresceu com a avó. Sem sapatos não pode ir à escola, a professora não o deixava entrar descalço na sala. O Zé não sabe ler nem escrever. Fumou pela primeira vez aos cinco anos e apanhou a sua primeira piela aos sete, numa pescaria. Tão grande foi a bebedeira, que caiu da bicicleta quando tentou regressar a casa e ali ficou inconsciente até ao anoitecer. Aos doze começou a trabalhar como servente de pedreiro e dois ou três anos mais tarde já fazia serventia a traficantes.
Na última noite que aqui jantou, antes de entrar para a comunidade onde está em tratamento, dizia assim aos meus filhos:" - Vocês não têm blocos vermelhos? Pois então, os blocos vermelhos comem os blocos brancos. E depois um gajo constipa-se e pode morrer. O HIV é quando é assim o princípio da doença, e a sida é quando a doença já está mesmo na morte."
Com ele aprendi como fazer um alambique na prisão. Corta-se um garrafão de lixívia de cinco litros, vazio, está claro! Com duas colheres e um pau no meio faz-se a resistência. Separa-se uma das extremidades de um fio eléctrico e une-se a cada uma das colheres; a outra extremidade liga-se à corrente eléctrica. Põe-se a chicha (fruta e pão que fermentaram quinze dias antes, dentro de um balde) no garrafão e mergulha-se a resistência lá no meio. Faz-se um orifício num dos lados e introduz-se um tubo de cobre. Esse tubo sai do garrafão, e passa dentro de um lavatório com água fria. É necessário deixar sempre um fio de água a correr na torneira para que a água não aqueça. Finalmente, termina dentro de uma garrafa, para onde pinga a aguardente destilada.
Aprendi muitas outras coisas. Como fazer uma "máquina" de tatuagens ou o que fazer em caso de overdose. Aprendi que o limão estragado, quando usado na preparação da "dose" provoca febre muito alta; que a ressaca provoca um descontrolo completo do organismo, desde as insónias ou dores musculares, aos vómitos e diarreias.
A manhã é a pior parte do dia, até se "orientarem", para a primeira dose. Mais que uma vez, ao abrir a porta de manhã, encontrei o Zé deitado no chão, agarrado ao estômago a gemer.
Um destes sábados visitei o Zé na comunidade onde faz tratamento. Comigo foi o Carlos, amigo e coabitante do mesmo carro abandonado; companheiro de expediente nos parques de estacionamento, nos peditórios à porta da igreja, nos pequenos furtos em supermercados. O Carlos também está em recuperação, mas num programa em regime mais aberto, podendo sair com alguém que se responsabilize por ele.
Engordou onze quilos, o Zé. A dicção também melhorou consideravelmente, apesar de continuar sem nenhum dente. Está dolorosamente resoluto. A coisa não parece fácil. No dia anterior à nossa visita tinha tido "reunião de sentimentos", evento a que eles (os utentes do pavilhão primário - primeira fase do tratamento) chamam a "passerelle". Daquilo que me contou, ficou-me a ideia de um apedrejamento terapêutico. Não é uma exposição feita por ele ao resto da assembleia (constituída pelos colegas de tratamento que com ele partilham o pavilhão primário - cerca de vinte). Passa-se ao contrário. Os colegas, um a um, apontam-lhe todos os defeitos que em dois meses de convívio enclausurado puderam descortinar. E o objectivo é, segundo as palavras do Carlos, que também ali esteve em tratamento, mas que não aguentou mais de quatro ou cinco meses; o objectivo diz então ele, é "encontrar as feridas e enfiar o dedo lá dentro, rodando afincadamente até ao osso." E o que se tira daqui? É um exorcismo; espera-se no fim uma explosão de raiva, uma fúria catártica, qualquer coisa de - sai daí ó demónio. E pronto! Ao Zé descobriu-se-lhe o seu orgulho exagerado e o seu uso desenfreado da manipulação (que por coincidência são adjectivos que rotulam qualquer adicto). Depois da descarga apoteótica do "modelo na passadeira" vem o reconhecimento de que falhas de carácter são humanas, mas que terão que ser sempre reconhecidas.
Sei que a taxa de sucesso na recuperação de toxicodependentes e alcoólicos nesta comunidade é das mais elevadas no país. Não sei como justificar os meios.

Wednesday, July 12, 2006

Os aniversários dizem outra vez.
O improptum tem um ano. Fez desta vez.
Um ano passado, com tantas faltas. E a justificação não é aceitável. Faltei ao blogue porque não parece ser fácil a quem lê, acreditar nas minhas "histórias".
Quando escrevo, confundo. As palavras intimidam-me, transmutam-se.
Só prova que aprendi muito pouco. Chumbei.

Tenho feito muitas perguntas. Devia tentar responder.
Lá em baixo, perguntava porque é que as crianças nos seus traços informes procuram tudo o que é redondo.
Acho que procuram o limite da forma diferenciada.

A interacção gravitacional (interacção de intensidade muito fraca, sempre atractiva, de longo alcance, abrangendo todas as partículas) é muito fraca à escala das partículas; torna-se no entanto preponderante à escala macroscópica. O facto de ser sempre atractiva faz com que se acumule eficazmente. A força gravitacional é cumulativa. As interacções electromagnéticas não possuem esta propriedade; são atractivas ou repulsivas segundo o sinal das cargas em presença, apesar da neutralidade eléctrica da matéria anular os seus efeitos a longa distância.
"Um objecto compacto de massa fraca é dominado pela interacção electromagnética. Ele pode, por isso, ter qualquer forma: mesa, garrafa, bicicleta... Mas quando a quantidade de matéria em causa ultrapassa um certo limiar, as forças de gravitação acabam por se sobrepor às forças eléctricas e o objecto em questão apenas pode existir sob uma forma grosso modo esférica. Assim, os planetas e as estrelas somente podem ser redondos, enquanto os asteróides com um raio inferior a 300 Km têm ainda o direito de possuir formas irregulares."
Étienne Klein. Sob o átomo, as partículas.

As crianças procuram com os seus primeiros traços desenhar o redondo
O redondo é grosso modo o limite da forma diferenciada
post hoc, ergo propter hoc
As crianças procuram o limite da forma diferenciada

Poderia dizer que procuram a forma esférica porque é a forma que apresenta a menor área de superfície para um dado volume; a forma que apresenta melhor resistência à pressão exterior. Mas, diz-me o bom senso que as crianças gostam de grandes superfícies; e não sabem defender-se das pressões exteriores.
Há mais respostas, claro. Esta poderia ser a do Renatus Cartesius - as crianças procuram o grande espírito.
" (...)Todos os corpos líquidos ou gasosos suspensos no ar têm a forma esférica, (...) Assim a energia que chamamos de espírito também obedece a este sistema. Quando nascemos temos esta energia esférica muito pronunciada e o sistema funciona da seguinte maneira, - no começo somos menos matéria e mais energia (...) "
Regulae ad directionem ingenii - regras para a direcção do espírito
René Descartes, o do "penso, logo existo"

Respostas estão no tudo. Para responder escolhe-se a parte "simples" e zás, aplica-se a lógica da síntese. Há resposta, no que existe. Existe, logo cogito.

A propósito de redondo; tenho-me comportado aqui como um quadrado, uma besta-quadrada. Peço desculpa aos redondos/as. E também aos bicudos/as.